31 maio 2006

Nações e aldeias

As nações nascem quando abandonamos as aldeias; as aldeias nascem quando a elas regressamos. Lá somos a ponte; aqui, a porta.

O voto piedoso de Sancho

“Sancho não quer que dois indivíduos estejam 'em contradição', um com o outro, como burguês e proletário […], ele desejaria vê-los entrar numa relação pessoal de indivíduo para indivíduo. Não considera que, no quadro de uma divisão de trabalho, as relações pessoais tornam-se necessariamente, inevitavelmente, relações de classes e se cristalizam como tais; assim, todo o seu palavreado reduz-se a um voto piedoso que pensa realizar exortando os indivíduos dessas classes a expulsar do seu espírito a ideia das suas 'contradições' e dos seus 'privilégios' particulares […] Para destruir a 'contradição' e o 'particular', bastaria mudar a 'opinião' e o 'querer'. […]
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Marx, Karl, Idéologie allemande. Paris: A.Costes, 1947, Œuvres Philosophiques, tome IX, p.94. Claro, Marx ataca Max Stirner (1806/1856), filósofo alemão, teórico do individualismo e da anarquia.

Mediocridade

Quanto mais medíocres somos, mais intensas são as expectorações de petulância e bulímica a necessidade de títulos dinásticos.

Sociologia e tensões sociais

Sociologia: ciência das tensões sociais, acho que li isto em Paul Ricœur.

Sem-terra no Brasil

Cerca de um milhão de trabalhadores sem-terra acampados no país, segundo o “Notícias” de hoje (última página).
Mas fontes brasileiras têm outros números: num país onde 14 milhões passaram fome em 2005, mais 46% da riqueza está nas mãos de apenas dez por cento da população mais rica e 1,6% dos proprietários possuem quase 50% dos imóveis do país, existem mais de 4,5 milhões trabalhadores rurais sem terra[*].
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[*]
http://www.mst.org.br/informativos/vozes/frameabertura.htm
http://www.google.com/search?q=quantidade+de+sem-terra+no+Brasil&hl=pt-PT&lr=lang_pt&start=20&sa=N

30 maio 2006

Big Brother também no Zimbábué

Segundo o “Notícias” de hoje (última página) , o governo do Zimbábué apresentou uma proposta de lei para controlar as mensagens via telefónica e o acesso ao email, “com vista a garantir a segurança nacional e combater a criminalidade”.

Violência, crença mágica e incesto

De acordo com uma pesquisa efectuada sobre 204 rapazes e raparigas da rua na cidade de Maputo em 1996, 24,5% deles tinham saído de casa devido à violência doméstica. Os pesquisadores salientaram que no caso das raparigas a violência pode ser sido incestuosa.
A relação incestuosa podia estar relacionada com crenças mágicos de um certo tipo, pois é suposto que um feitiço feito por alguém pode ser eliminado a partir de uma transgressão das regras usuais.
Eis o extracto de uma entrevista feita a uma rapariga:
“-Como te chamas?
-Amélia Nkata Cocuana.
-Por que é que te chamas “Amélia esposa do avô”?
-Porque esta criança que vês aqui é filha do meu avô. Ele tinha de cumprir com a promessa da família, feita a um curandeiro; havia um espírito proveniente da família da minha mãe que estava encarnado em mim e perturbava a vida sexual do meu avô. A forma que arranjaram para enxotar esse mau espírito foi eu dormir com ele. Engravidei, com 13 anos.
-Como fazes para alimentar os teus filhos?
-Mulher é mulher! “Funciono”!
-Lá em casa vêem com bons olhos esse teu “funcionamento”?
-Como é que não hão-de ver? Eles também têm fome. Quando durmo até tarde, acordam-me para eu ir para a rua. Se for o meu avô, até me deita água fria em cima para eu saltar da cama.”[*]
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[ *]Médecins du monde e Direcção da Acção Social da Cidade, Um olhar sobre as crianças da rua em Maputo. Maputo, 1996; Bagnol, Brigitte, Diagnóstico do abuso sexual e exploração comercial sexual de crianças em Maputo e Nampula. Maputo: Embaixada do Reino dos Países Baixos, Março de 1997, p. 27-28.

O estudioso da sociedade

Dizes-me que queres estudar a sociedade? Acho isso uma coisa muito meritória, até porque o dizes com esse ar sério, profundo.
Mas diz-me uma coisa: que sociedade? A tua? O que é a tua sociedade? Mas, enfim, se tua, diz-me: que coisas achas que há lá dentro, nessa tua sociedade? E como a elas chegas? Com as tuas ideias, com aquilo que te ensinaram? E lá vais lá encontrar esses grandes conjuntos genéricos chamados Homens, Mulheres, Jovens, Velhos? E vais usar uma faca, cortando aqui o económico, ali o político, acolá o cultural? E depois dirás coisas elegantes como estrutura sócio-económica, por exemplo? E, já agora, não queres cobrir tudo isso com um creme chantilly tipo ideologia? E não queres que te reserve já um lugar para o próximo congresso das sociedades compreendidas-de-vez?
Mas, aqui entre nós, diz lá sinceramente, estudioso compenetrado: estás mesmo disposto a entrar sem preconceitos nessa tua sociedade? Estás decididamente disposto a deixar na umbreira dessa casa os teus sapatos cheios de prejuízos prontos-a-servir?

CEA e CIARIS na luta contra a exclusão social

O Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo Mondlane e o Centro Informático de Aprendizagem e de Recursos para a Inclusão Social (CIARIS, secção portuguesa) da Organização Internacional do Trabalho, terminaram há dias a ministração de um curso para 17 formandos com o objectivo de, por um lado, contribuir para o reforço da capacidade de desenvolvimento de actividades que promovam a inclusão social em Moçambique e de, por outro, fornecer um conjunto de ferramentas que apoiem no desenvolvimento de comunidades de aprendizagem e na prática de luta contra a exclusão social, com base nas tecnologias da informação e comunicação.
O programa é supervisionado no CEA pela minha colega Susana Maleiane e conta com a participação do sociólogo Valerito Pachinuapa.
Estão previstas mais acções a médio e longo prazo.
Veja, entretanto, os seguintes portais:
http://www.ilo.org/ciaris/changeLanguage.do?userLanguage=pt
http://moodle.estbarreiro.ips.pt/moodle/course/category.php?id=2

Bela mulher moçambicana usando mussiro


Esta bela mulher do norte costeiro moçambicano tem o rosto coberto de mussiro. O musssiro é o caule de uma árvore que se fricciona numa pedra, ficando em estado húmido e farinhento. A massa assim obtida aplica-se no rosto, secando depois. É suposto que o mussiro deixa a pele fresca, jovem, combatendo as rugas.

29 maio 2006

Fenómenos antinaturais

Entre os fenómenos mais antinaturais que existem, porque rigorosamente sociais, recordemos tanto o universalismo (que se ganha em luta permanente contra o localismo) quanto a liberdade (a qual, não é um dado da natureza mas, antes, uma vitória sobre ela).

Os intelectuais orgânicos do mundo rural

Ao serviço dos Antigos, dos Velhos, dos Chefes, os contra-feiticeiros, os curandeiros, os herbanários, etc., são os verdadeiros intelectuais orgânicos do mundo rural, são eles que procuram assegurar a representação social do mundo e darem-lhe, através da gestão da feitiçaria*, a consistência durável de uma ideologia ao serviço da ordem estabelecida.
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*«Falar de feitiçaria, efectivamente, é designar um conjunto de crenças estruturadas e partilhadas por uma dada população acerca da origem da infelicidade, da doença ou da morte, e o conjunto das práticas de detecção, de terapia e de sanções que correspondem a estas crenças.» - Augé, Marc, As crenças na feitiçaria, in Augé, Marc (dir), A Construção do Mundo (Religião, Representações, Ideologia). Lisboa: Edições 70, 1978, p.72;__,Théories des pouvoirs et idéologie, Étude de cas en Côte d'Ivoire. Paris: Hermann, 1975, pp.85-115.

Legitimidade e ideologia

Nada gosto de definir coisas, de as manualizar.
Mas, por vezes, o hábito toma conta de mim.
O que é legitimidade? O que é ideologia? Vou tentar as respostas.
Eis uma pequena formulação provisória e muito formal, tomando o Estado como eixo de relação: legitimidade é o reconhecimento historicamente situado e flutuante, tácito ou declarado, manifestado pelos dominados aos dominantes no sentido de que é suportável a ordem social vigente e reconhecida a eficiência dos segundos.
A ideologia é, por excelência, a caixa negra dos processos legitimatórios. Por ela entendo, numa definição prepositadamente instrumental, o conjunto de procedimentos utilizados pelos dominantes para interiorizar e rotinizar nos dominados a validade normativa da assimetria social, para aí plantar estoques de consentimento e de amorfismo, obtendo, assim, a justificação da ordem vigente.

Sobre a origem das capulanas



Num belo texto, Maria de Lurdes Torcato escreveu que a origem da capulana continua um enigma, mas que na África oriental falante de Swahili se diz que a maneira de vestir a capulana surgiu no século XIX “quando as mulheres comçeram a comprar lenços (em Swahili diz-se leso) de tecido de algodãp estampado e colorido, trazido pelos mercadores portugueses do Oriente para Mombaça” [1].
Ora, sejam quais forem as suas modalidades modernas, a capulana mais não é, em meu entender, do que uma descendente do antigo bertangil (ou bertangim), tecido de algodão vermelho e azul fabricado na Índia (Surate, Cambaia, Diu e Damão).
Todo o comércio em Moçambique assentava em dois artigos básicos: o chamado pano (mais tarde bertangil, vindo da Índia) e a missanga (especialmente vinda de Veneza na gestão colonial portuguesa).
E a actividade mercantil ligada aos tecidos, na sua extensão e profundidade, foi sempre menos actividade de Portugueses, do que de Indianos.
Por hipótese, foram os tecidos indianos que contribuíram para a ruína da indústria local das famosas machiras zambezianas, panos de fio grosso (por vezes também fino) faricados a partir de algodão localmente cultivado, estando a fiação e a tecelagem a cargo dos homens ainda no século XIX.
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AAVV, Capulanas & Lenços. Maputo: Missanga, 2004, p. 21.

Os exames

“Não é verdade que os exames são destinados a testar não a capacidade de pensamento independente do aluno mas a medida pela qual ele dominou uma doutrina, um tal domínio sendo considerado com a única coisa importante?”
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Feyerabend, Paul K., Une connaissance sans fondements. Paris: Dianoïa, 1999, p.78.

Risco

Erigir qualquer tipo de saber em conhecimento total e absoluto é um risco e, muitas vezes, um perigo. Toda a defesa agressiva da «verdade» é, invariavelmente, um passo dado na intransigência e na recusa do Outro e do conhecimento diferente desse Outro.

Diálise do senso comum

Quero defender, uma vez mais, que é fundamental estarmos atentos à evidencialização teimosa da vida, que é fundamental procedermos a todo o momento a uma espécie de bisturização ou, se preferirdes, de diálise das camadas de senso comum (porque, na realidade, no fundo é o senso comum que está aqui em causa) sedimentadas em nós e no nosso inesgotável capital de crença e de credulidade.
É fundamental, enfim, pôr a evidência não como um dado adquirido, mas como um problema e como um campo interactivo.
Proponho-vos que tenhamos da vida, na esteira de um Kurt Lewin, não uma concepção aristotélica, mas uma concepção galileana, não uma concepção de estados substantivos, mas uma concepção de dinâmica de campo.
Na verdade, numa concepção aristotélica, a qual é, em última análise, homologante do senso comum, coisas e fenómenos têm em si, na suas propriedades, a sua razão de ser[1]. Na concepção aristotélica o mundo é normativamente visto como pré-arrumado, preexistente e pós-existente. O que não é claro, ordenado e regular nos seus movimentos circulares e rectilíneos (tal como os fenómenos celestes) é considerado inferior.
Ao contrário, numa concepção galileana, todos os fenómenos são inseridos numa dinâmica de campo, interactiva, viva, dinâmica, conflitual, onde cada parte depende da outra[2].
E propondo as coisas assim, é, também, propor que se tenha da cultura, por exemplo, a concepção de um processo vivo, formado de inúmeras interacções sociais, de invisíveis sincretismos, de fecundações permanentes. Escreveu Lewin: «Com um rio, cuja forma e velocidade são determinadas pelo equilíbrio entre aquelas fôrças que tendem a fazer a água correr mais depressa, e a fricção que tende a fazer a água fluir mais devagar, o padrão cultural de um povo, numa época dada, é mantido por um equilíbrio de fôrças em contraposição.»[3]
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[1]A partir da frequência de certos comportamentos concluímos que eles são propriedades intrínsecas de algo ou de alguém, tal como, para Aristóteles, a queda era uma propriedade intrínseca dos corpos. Na verdade, nada é explicado aqui e estamos, portanto, perante um exercício de raciocínio circular - veja, a propósito, Garcia-Roza, Luiz Alfredo, Psicologia Estrutural em Kurt Lewin. Rio de Janeiro, Vozes, 1972, p. 11. Veja, também, Malherbe, Michel, Qu'est-ce que la causalité? Hume et Kant. Paris: J. Vrin, 1994, pp.5-23.
[2]ibid., pp.1-28.
[3]Lewin, Kurt, Problemas de dinâmica de grupo. São Paulo: Cultrix, s/d, p.62.

28 maio 2006

Ainda sobre as tchuna-babes: um texto de Iolanda Aguiar

Ainda sobre o tema das tchunas-babes, decidi colocar como texto central no diário o seguinte trabalho de Iolanda Aguiar, que ela enviou como comentário:
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Tchuna-babes «falam» espanhol

«Tchuna-babes» é o nome pelo qual são conhecidas as calças elásticas e de cintura baixa em Moçambique. Ao serem utilizadas numa campanha publicitária contra a SIDA, as “tchuna-babes” foram desviadas do fim para o qual foram criadas e geraram uma série de associações polémicas entre: (1) as ditas calças e a SIDA; (2) as ditas calças e a “racionalidade camponesa”, (3) as ditas calças e a moral e (4) as ditas calças e o imaginário sexual.
Entretanto, o que me chamou a atenção foi a velocidade com que a informação circulou, de Moçambique para o Brasil, Paris, Argentina, Portugal e por aí fora. Isto é, foi a circulação da informação em torno das “tchuna-babes”. Noutros termos, o que me chamou a atenção não foram as “tchuna-babes” enquanto instrumento publicitário, mas a representação das “tchuna-babes” enquanto vector de circulação e de reestruturação de informação. Em suma, o que me chamou a atenção foram as proporções globais dadas às “tchuna-babes” enquanto facto local. As “tchuna-babes” não são uma “ilusão”, elas materializam um todo compexo e contraditório, formado por circuitos autónomos que se entrecruzam, constituindo as “bases” daquilo a que chamamos mundialização. Em alguns segundos, as “tchuna-babes”, que se tornaram polémicas, desde que uma campanha publicitária as vinculou à propagação da SIDA, ultrapassaram as fronteiras do real (espaço local – Moçambique) e materializaram-se no espaço virtual, fixando-se, assim, no espaço mundial. Certo, as “tchuna-babes” «falaram» espanhol e Moçambique «tchunou» na América Latina, o que nos mostra que as dinâmicas veiculadas pela circulação da informação são um facto. “Há anos que a novela brasileira habita as televisões e os corações de milhares de moçambicanos”. (veja neste blog o artigo do Professor C. Serra, “A novela brasileira”), o que reforça a ideia supracitada. Os meios de comunicação e os midia estão a forjar uma “consciência planetária”. Se quisermos caracterizar de maneira esquemática a nossa época, poderíamos dizer que é uma época de inquietação, onde a consciência da complexidade nos faz mergulhar num mundo de impotência, onde a perspectiva de futuro, que já nos fascinou, pois era promissor, transformou-se em ameaças apocalípticas. (Benasayag, 2004:11) [1]
A “mundializaçao” tornou-se, em alguns anos, sinónimo de algo aterrorizador. Assim, para uns ela inspira um sentimento de resignação, temos que aceitar as mudanças, pois é impossível lutar contra elas; para outros o sentimento é de rejeição total, é absolutamente necessário lutar para manter a ordem social.(Cohen: 1997:14) [2].
Mas a velocidade com que Moçambique «tchunou» na América Latina, leva-me a querer que a mundializaçao não veicula somente coisas negativas. Em consequência, o mais importante para mim é saber como tirar vantagem das dinâmicas de mudança induzidas pela mundialização. Pois, “Interessante mesmo é perceber que “jeito” vai, “jeito” vem; “tchunas” vão, “tchunas” vêm e “discussões” vão e voltam e os índices de HIV, esses sim, sobem!” (veja comentário de Mangue neste blog – “Por trás dos Tchunas”).
A consciência planetária veiculada pelos midia transforma facilmente o indivíduo em espectador, mas dificilmente o transforma em actor. Exemplo: a internet (para quem a ela tem acesso) permite a circulação rápida de informação. Os cartazes publicitários (criados com boa intenção) podem levar ao desvio de informação, mas esses cartazes podem ser vistos por todo o lado em Moçambique (suponho). Por outro lado, a nova economia mundial cria um divórcio entre o que se espera dela e a realidade. Exemplo, os medicamentos para o combate à SIDA são caros. No entanto, esses medicamentos tanto curam as pessoas que usam “tchuna-babes” como as que não usam. Os mesmos medicamentos curam quer pobres quer ricos.
Certo, a mundialização económica não acompanha a mundialização da consciência planetária, daí a multiplicação de conflitos em torno da mundialização. Mas, parafraseando Roger Bastide[3] , se tentarmos dar menos importância aos efeitos desorganizadores dos conflitos e dar mais importância aos seus efeitos organizadores, talvez esteja aí uma forma de tirar vantagem da mundialização. Assim sendo, espero que “as proporções globais” dadas as “tchuna-babes” tragam vantagens para o espaço local (diminuiçao dos índices de HIV, em Moçambique). Noutros termos, espero que seja o início de uma colaboração profícua entre os especialistas que se cruzaram e/ou se cruzarão neste ciber espaço e os agentes no terreno. Pois estou convicta de que a mundialização não veicula somente coisas negativas.
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[1] BENASAYAG, Miguel, 2004, Le mythe de l’individu, Paris, La Découverte/Poche[2] COHEN, Daniel, 1997, Richesse du Monde, Pauvretés des nations, Paris, Flammarion.
[3] Bastide,R., 1998, Anthropologie appliquée, Paris, Stoc.

26 maio 2006

Luandino Veira recusa Prémio Camões

O escritor angolano Luandino Veira recusou o Prémio Camões 2006, aparentemente por “razões pessoais e íntimas” (semanário “Savana” de hoje, p. 31).
Recorde-se a nossa entrada anterior sobre a atribuição do prémio.

Cientistas sociais moçambicanos: vamos dialogar?


Colegas das ciências sociais: vamos dialogar a 7 de Junho!
Vinde, eu também lá estarei para, como bem sabeis, dizer coisas estúpidas com ar profundo, como diria o jovem Marx.
E não se preocupem com os títulos cardinalícios que antecedem os nomes dos “profs”. É efeito da inércia divinizadora dos jovens organizadores…

Estudos Moçambicanos


Saiu o número 21 da revista Estudos Moçambicanos do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, num trabalho a cargo das nossas colegas do Departamento de Estudos da Mulher e Género. Os meus parabéns!

Pequena sociologia das tchuna-babes

Sumário
1. Origem da expressão
2. Locais públicos de exibição das tchuna-babes
3. Os mais velhos e o temor
4. Razões do interesse na net pela expressão
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1. A palavra tchuna parece não ter origem directa em nenhuma das línguas locais. Tudo indica ser simples produto da criatividade dos nossos jovens. Nasceu, eventualmente, por parentesco fónico ou de outro tipo com palavras de línguas que ignoramos (e que certamente os seus utentes também ignoram). Quanto a babes, trata-se, naturalmente, de um aportuguesamento do plural inglês "babies". Poder-se-ia traduzir por "meninas bonitas".
A expressão tchuna babes está bem encastoada no vocabulário popular, mesmo em Changane. Na prática a expressão remete para beleza, tentativa para impressionar, “arrasar” os mirantes. Vamos a ver o que me escreveu hoje, via email, uma antiga aluna minha, a Helena Monteiro, a meu pedido:

“A palavra tchuna é calão (parece que é só de Maputo) e quer dizer impressionar ou chamar a atenção.
A expressão está a ser muito utilizada agora para fazer referência às calças jeans elásticas. As calças são de várias cores, mas têm de ser elásticas para ficarem justas ao corpo e é por ficarem justas que se tchuna ou se chama atenção. As pessoas dizem que quem as veste acaba por chamar a atenção por mais que tenha corpo mal feito.
A expressão é utilizada também quando uma pessoa quer impressionar numa festa, neste caso diz: “eu vou tchunar na festa”, algo como “vou arrasar na festa”.

2. Existem, na cidade de Maputo, duas possibilidade de vermos as jovens com as tchuna-babes.
Temos a Avenida 24 de Julho, no troço que vai entre o restaurante Piri-Piri e a antiga Fnac. Aí, diariamente, especialmente de tarde, passam as jovens em grupo, exibindo as tchuna com elegância, donaire, umbigo à mostra, corpo bamboleante, muitas delas estudantes da Escola Comercial, da Escola Industrial e da Secundária Josina Machel.
Temos, no início da noite, as jovens trabalhadora do sexo que se postam na Avenida Mao Tsé- Tung, junto ao restaurante Sheik, procurando atrair clientes.

3. Os mais velhos temem esta redesenhagem estética do corpo das nossas jovens. Eles acham que tudo vai mal, que os costumes estão agora dissolutos. Agarrados ao passado (onde tudo era saudável, dizem), vituperam um presente que não compreendem e temem. Recentemente, mulheres da Organização das Mulheres Moçambicanas pediram ao presidente da República que fosse publicada uma lei proibindo as jovens de usar calças apertadas. Naturalmente o presidente foi sensato e explicou-lhe que isso não era possível.

4. Como se recordam, anteontem começou o que chamei “assalto” ao meu blog devido à expressão. Primeiro da Argentina, depois de outros países sul-americanos, falantes de espanhol e de português.
Ora, tudo leva a crer que a afluência tenha a ver com a leitura de três portais, a saber:

http://www.uol.com.br/
http://actualidad.terra.es/articulo/html/av2895194.htm
http://www.clarin.com

Um leitor brasileiro foi o primeiro a colocar-me essa hipótese (existe uma entrada dele neste blog). Depois, uma leitora espanhola, a Carmen, muito me ajudou na busca dos portais.
Entretanto, a busca da expressão no google conduzia e conduz directamente ao meu blog.
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Finalmente: serão bem vindos todos aquelas e todos aqueles que corrigirem e/ou ampliarem o conjunto de hipóteses aqui deixado.
Kanimambo (=obrigado)!

25 maio 2006

Ainda sobre as tchuna-babes

Um leitor deste diário acabou de me enviar a referência de um site com o seguinte trabalho, cuja leitura vivamente aconselho:

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25/05/2006 - 11h49
Calças brasileiras são pivô de polêmica sobre aids em Moçambique

Rafael Bié Maputo, 25 mai (EFE) - A moda brasileira, muito popular entre as jovens moçambicanas, transformou-se em um assunto polêmico no país africano desde que uma campanha publicitária vinculou as calças justas à propagação da Aids. A campanha foi lançada pela Fundação para o Desenvolvimento das Comunidades (FDC), presidida por Graça Machel, viúva do ex-governante moçambicano Samora Machel e atual esposa do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela. A mensagem do anúncio publicitário é a de que os adultos compram calças importadas do Brasil - conhecidas como "tchuna babes" - para jovens e adolescentes com o objetivo de ganhar "favores sexuais". Os comerciais possuem frases como "Quem te dá uma 'tchuna babes' também te dá o HIV" e "Com a 'tchuna babes' você também pode ser portadora do HIV". As calças, vendidas nos mercados da capital e em outros pontos do país e importada do Brasil por comerciantes nigerianos, caracterizam-se por ser muito justas e por marcar o corpo da mulher. Na última edição da revista local "Domingo", a campanha foi criticada duramente. Para a "Domingo", a campanha indica que, para os criadores dos anúncios, "agora vale tudo". Moçambique possui uma das taxas mais altas de infecção do HIV na África, calculada em 18% da população de cerca de 18 milhões. Uma especialista em publicidade, Verónica Jona, atacou duramente a fundação responsável pela campanha: "A FDC perdeu a razão ao fazer este tipo de associação entre calças justa e aids". Segundo Jona, essa campanha "não é digna de alguém que tenha estudado publicidade". "Também não é coisa de pessoas responsáveis", acrescentou. "Já não sabem como fazer publicidade contra a aids. Agora chegou a fase da desinformação", insistiu. Para Fabrício Sabat, um estilista moçambicano, o verdadeiro problema da campanha da FDC é que ela conduz a um equívoco. "Se alguém sai de Maputo rumo às zonas rurais (com alto índice de analfabetismo) dizendo que as 'tchuna babes' estão associadas ao HIV, as mulheres que usam esse tipo de roupa serão vistas como um elemento nocivo dentro dessas comunidades", disse Sabat à Efe. Esse tipo de calça é tão popular que um cardeal da Igreja Católica, José Alexandre dos Santos, chegou a proibir a entrada de jovens que vestissem esse tipo de roupa nas cerimônias religiosas de sua paróquia. No entanto, as fiéis mais jovens continuaram assistindo à missa vestindo as "tchunas babes" brasileiras. Segundo o jornalista moçambicano Bayano Valy, "é preciso censurar a publicidade de alguma forma", embora tenha afirmado que neste caso "há coisas sobre as quais ninguém quer falar"."Todos sabem que as mulheres jovens saem vestidas decentemente de casa e depois passam pela casa de alguma amiga, mudam de roupa e se exibem na rua", opinou Bayano.

http://estilo.uol.com.br/saude/ultnot/2006/05/25/ult2067u625.jhtm

Assalto prossegue às tchuna-babes!

Até ao momento em que escrevo esta entrada, 342 visitantes desde a meia-noite, a maior parte à procura das tchuna-babes! Um verdadeiro assalto!

Assalto às tchuna-babes!

Desde ontem à noite, minha noite local, que dezenas e dezenas de surfistas assaltam o meu blog à procura (?) das calças chamadas tchuna-babes.
Vários dos meus leitores recordam-se de que coloquei há tempos neste blog uma entrada a propósito de um anúncio publicitário lançado em Maputo, anúncio que procura mostrar os malefícios do HIV/SIDA através das tchuna-babes.
Ora, os curiosos fazem primeiro uma busca no Google, nele escrevem “tchuna babes” e depois chegam directos aqui.
O fenómeno começou na Argentina e depois estendeu-se a outros países, especialmente sul-americanos, como uma bola de neve. Até do Alasca aqui chegaram. Há quem entre duas, três vezes, à procura (?) das calças. E, até, há quem procure traduzir para língua inglesa o conteúdo do que escrevi na entrada referida.
Mesmo surfistas da Europa, que são habituais frequentadores deste blog, aqui entram agora completamente tchuna-babezados.
O que terão as famosas tchuna-babes, as tais calças que deixam o umbigo à mostra aqui, em Maputo, e que são importadas especialmente do Brasil?
Algum net-sociólogo me ajuda a interpretar tão interessante fenómeno?

24 maio 2006

A propósito de Pierre Bourdieu

Politizar as coisas cientificando-as.
Pensar a política sem pensar politicamente.
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Poupeau, Franck et Descepolo, Thierry, Pierre Bourdieu, Interventions, 1961-2001, Science sociale & action politique. Paris: Agone, 2002, p. 11.

Os fast foodistas

Os fast foodistas nunca dizem modestamente: sou o herdeiro do que outros pensaram.
Não, eles dizem antes: sou o pensamento.
E nunca dizem: na minha opinião, penso que…
Olímpicos, dizem antes: Na minha opinião pessoal, penso que…Etc.

Think tanks

Estes think tanks, estas sopas cognitivas pré-fabricadas, estes intelectuais mediáticos que nos fast foodizam, que nos impõem diariamente a imponência da sua mediocridade trajada de coisas que não leram, de pesquisas que não fizeram e de pensamentos que nunca tiveram nem terão.

Do que os sociólogos devem ter consciência

Os sociólogos devem logo à partida tomar consciência de quatro fenómenos complexos:

1. A vida é uma enorme casa cheia de dominações diversificadas, as quais estão regra geral escondidas sob um enorme manto de regras e de justificações naturalizadas, regras que os interesses particulares de alguns procuraram e procuram transformar em interesses de todos;
2. Os dominados são muitas vezes os artífices da sua própria dominação, depois que interiorizaram como natural, como se um aguilhão tivessem, o discurso dos dominantes;
3. Antes de estudarem os seres humanos em sua labuta social, os sociólogos devem estudar os discursos que foram produzidos para explicar e justificar essa labuta;
4. Ao tentarem tomar consciência disso tudo, os sociólogos devem ter consciência aguda e rigorosamente policial de que também eles - e irremediavelmente eles - guardam o aguilhão do discurso dominante.

Sobre a certeza

"A certeza é por assim dizer um tom de voz em que alguém declara como são as coisas, mas não se infere desse tom que tem razão.”
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Wittgenstein, Ludwig, Da certeza. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 23, itálico no original.

A mensagem sociológica segundo Pierre Bourdieu

“Levar à consciência os mecanismos que tornam a vida dolorosa, inviável até, não é neutralizá-los; explicar as contradições não é resolvê-las. Mas, por mais cético que se possa ser sobre a eficácia social da mensagem sociológica, não se pode anular o efeito que ela pode exercer ao permitir aos que sofrem que descubram a possibilidade de atribuir o seu sofrimento a causas sociais e assim se sentirem desculpados; e fazendo conhecer amplamente a origem social, colectivamente oculta, da infelicidade sob todas as suas formas, inclusive as mais íntimas e as mais secretas.”
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Bourdieu, Pierre, A Miséria do mundo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2001, p. 735.

Obedecer

Os seres humanos dispõem de capacidades, de chances, de recursos, de trunfos, de «fontes de incerteza»[1] desiguais.
Portanto, para enunciarmos um truísmo, nem todos podem mandar.
Em todas as sociedades e em todas as épocas históricas, apenas alguns têm podido constranger a conduta de muitos[2].
O que significa constranger? Significa basicamente que o actor A, por exemplo, é capaz de conseguir que o actor B faça o que ele quer que ele faça. Para que o actor B faça o que o actor A quer que ele faça, vários fenómenos podem concorrer em simultâneo nesse sentido, a saber: meios de constrangimento físicos, materiais, adminitrativos[3], etc.
Mas, condição básica para a aquiescência política, importa que exista uma espécie de capital de obediência[4] nos seres humanos, uma espécie a-histórica de estoque do sim, produto potencial dos sistemas de interiorização do princípio de respeito vigentes em todas as sociedades.
A esse respeito, Bertrand de Jouvenel falou em «hábito da espécie» e na «miraculosa obediência dos seres humanos». E acrescentou: « Dizem-nos «Vem!» e nós vimos. Dizem-nos «Vai!» e nós vamos. Obedecemos ao perceptor, ao polícia, ao ajudante.»[5] Está aí um fenómeno que Espinosa veria como tradução da necessidade de o homem-médio «conservar o seu ser»[6] e que, no século XVI, La Boétie atribuiu ao costume, apelidando-o de «servidão voluntária»[7]. É certamente em linha com o mistério da obediência civil que, numa formulação rude e impressionista, Kant escreveu no século XVIII que «o homem é um animal que, a partir do momento em que vive entre outros indivíduos da mesma espécie, tem necessidade de um senhor[8]. E, ainda, de uma forma emblemática, Godelier observou, numa fórmula provocadora, que sendo todo o «poder de dominação» composto da violência e do consentimento, «a força determinante não é a violência dos dominantes, mas o consentimento dos dominados à dominação»[9].
E, certamente, não seria descabido encontrar nas pessoas, sobretudo quando empobrecidas, uma especial propensão a compensar ou a sobrecompensar a inferioridade social com a aceitação da ordem dos fortes e/ou com a busca reverencial de um salvador[10].
É como se para se compreender essa «servidão voluntária», este «dilema da obediência»[11], enfim, na clássica formulação platónica, esse Senhor que habita em nós[12], fosse necessário haver uma espécie de força propulsora inicial da qual restasse, depois, irremediável, um aguilhão. Esse é o quadro proposto por Elias Canneti nesta admirável passagem prenhe de irremediabilidade: «Toda a ordem é composta de uma impulsão e de um aguilhão. A impulsão constrange quem a recebe a executá-la em conformidade. O aguilhão resta no fundo daquele que executa a ordem. Quando as ordens funcionam normalmente, como se espera que assim seja, o aguilhão resta invisível[...]. Mas o aguilhão afunda-se profundamente na pessoa que executou a ordem e aí permanece sem alteração. Não há realidade física mais imutável. O conteúdo na ordem persiste no aguilhão; a sua força, o seu alcance, os seus limites, tudo isso foi prefigurado no instante mesmo em que a ordem foi dada. Anos inteiros podem passar, mesmo dezenas de anos, antes que esta parte absorvida e armazenada da ordem, a sua imagem exacta em miniatura, reapareça»[13].
Na realidade, o constrangimento remete fundamentalmente para a ordem da força, para os fenómenos que, conjugados, fazem o espectáculo quotidiano do temor instituído.
O constrangimento reenvia, portanto, para o aguilhão canettiano e, em última análise, para a clássica relação hegeliana senhor/escravo, na qual a busca do reconhecimento de si e a preservação da vida pode levar o escravo a pôr de lado a liberdade( e, nos termos hegelianos, a «imediatidade») e a decidir sujeitar-se ao senhor[14].
Porém, será que a relação senhor/escravo tem apenas a ver com o impulso do «senhor», com a força deste? Com efeito, o problema pode ser mais complexo do que aparenta. Como defendeu Manès Sperber, a tirania é menos o produto do «senhor» do que o produto do «escravo», é menos aquele que a fabrica do que este[15]. Libertarmo-nos da tirania não é um dado da natureza, não é um estado adquirido: ela é, pelo contrário, conquistada simultaneamente contra a natureza e contra o nosso próprio corpo (tenha-se em conta, por exemplo, a sujeição permanente a que se encontra votada a criança)[16].
É por isso que se deve distinguir dominação de constrangimento.
Se este reenvia para a força, aquela fá-lo para a aceitação do constrangimento, para, digamos, a disposição de aceitar a relação assimétrica de poder. É weberiana a formulação da dominação como aceitação da ordem[17].
Considero que a autoridade é uma modalidade particular da dominação, com sentido idêntico à ou vizinho da hegemonia gramsciana. Eventualmente o mais impalpável dos fenómenos políticos aqui em análise, como defendia H. Arendt, a autoridade exclui a violência, o constrangimento e a própria persuasão. Ela reenvia para o ascendente de alguém, para o seu prestígio (a autoridade de um pai, de um professor, de uma universidade, de um intelectual, etc.). O termo pode, ainda, porém, designar, no seu sentido menos nobre, um eixo institucional pesando com toda a sua força concentrada (a «autoridade da polícia», por exemplo). Mas convém guardar o sentido genuíno do termo para uma aceitação consciente do prestígio, da força moral, da competência, etc., de alguém ou de uma instituição (Os piores inimigos da autoridade são o desprezo e o riso[18]).
Mas existe um outro mecanismo angular do político, o qual assume uma particular relevância hoje, neste mundo onde a desobediência civil aumenta[19] e onde, portanto, não pode excluir-se jamais o recurso ao cesarismo (momento, como escrevia Gramsci, no qual as forças políticas em conflito se equilibram de «maneira catastrófica»[20]): a estratégia.
O que é estratégia? Nos termos clausewitianos, pode dizer-se que é um acto de violência destinado a constranger o adversário a sujeitar-se à nossa vontade[21]. Portanto, digamos que a estratégia é um conjunto de cálculos ganhantes. Nos termos de Charnay, a estratégia é a arte polimorfa da coerção e da anti-coerção, da persuasão e da força, do respeito e da violação. Ela supõe a existência de um Outro que importa se não vencer, pelo menos tornar favorável aos nossos desígnios[22].
Tornar alguém politicamente favorável aos nossos desígnios significa também, do ponto de vista do príncipe[23], fazer como vem na cartilha maquiaveliana, a saber: manipular e entorpecer os espíritos, levá-los à obediência[24] e, especialmente, ao conformismo. Por outras palavras, fazer de maneira que «os cidadãos tenham necessidade do Estado»[25] e com isso se conformem, especialmente se houver a arte de entreter os súbditos em festas e em jogos[26] e, como defendia o Inquisidor-Mor de Dostoievski, de lhes dar o pão pelo qual trocam a liberdade[27].
Podem ser consideradas, numa perspectiva balanderiana, duas formas de aceitação da ou de consentimento à ordem vigente: a activa e a passiva. Na primeira, existe um propósito deliberado de servir uma dada ordem social, face aos benefícios daí advindos, ainda que esta atitude seja muitas vezes ambígua, de duplo jogo. Na segunda, faz-se prova de indiferença, deixa-se que as coisas fiquem como estão, num estado de espírito que pode lembrar a relação hegeliana senhor/escravo[28].
Em qualquer relação política tem de haver e há um mínimo de «predisposição para obedecer».
Mas a questão fundamental para os príncipes não está aí, a questão fundamental está em como normalizar, em como rotinizar essa predisposição, em como naturalizá-la, em como torná-la um exercício digamos que sagrado, moralmente obrigatório, moralmente condicionante. Por isso em todas as sociedades existem normas muito severas no que concerne aos conteúdos e processos da educação[29]. Por isso, também, certos autores incluem o sagrado no político e falam de rituais e de liturgias políticas[30].
Mas não é possível analisar a relação política apenas num quadro estreito onde a força imperaria casada com o conformismo, com a estratégia ao serviço de ambos.
Ainda que esse quadro de servilidade não deva ser substimado[31], não deve, porém, ser visto como constituindo a linha dorsal da relação política. Já propus que lá onde a relação está saturada de força não existe relação política propriamente dita. Importa, portanto, encontrar outras veredas de análise.
Nesse sentido, uma fórmula, a espinosiana, continua, creio, a ser ainda hoje actual e pertinente: jamais o espírito de um homem tombará na absoluta dependência de quem quer que seja. Se fosse tão fácil comandar os espíritos como se comandam as línguas, escreveu ele, jamais os governos teriam necessidade de recorrer à violência[32].
É aqui que importa ter em conta a «desforra dos dominados», como diria Michel de Certeau. Porque, afinal, existem, também, táctica e estratégias de dominados.
A resistência, banal fenómeno que é teoricamente possível fazer sair da família mecânica newtoniana da força e da contra-força, é uma parte imanente da relação política, digamos que a sua mão invisível, mas persistente.
Lá onde tem curso uma relação política[33], existe uma resistência, um inconformismo, uma aspiração geral ao não obedecer e, quero crer que em simultâneo, um desejo específico de um «sempre mais» redistribuidor por parte dos príncipes. Intransitividade da liberdade[34], diria Foucault[35]. Porque, para referir os termos maquiavelianos, importa ter sempre em conta os dois «humores opostos»: se nenhum povo gosta de ser comandado nem oprimido, muitos príncipes, se não todos, gostam justamente de comandar e de oprimir os povos[36].
Portanto, a relação política reveste a real face de um Jano ou, se preferirdes, é a tradução fiel de uma espécie de complexo de Antígona, a saber: se somos moralmente obrigados a obedecer, não somos menos obrigados a desobedecer quando a nossa consciência a isso nos obriga. Por outras palavras, há em todos nós um fundo libertário hobbesiano[37] sempre pronto à acção[38].
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[1]Este é um dos conceitos fundamentais de Crozier. Toda a organização é permanentemente sujeita a «massas de incerteza» muito elevadas (técnicas, comerciais, humanas, financeiras, etc.). Quem melhor controlar essas fontes através da competência e das redes de relações/comunicações, deterá o maior recurso de poder - veja Crozier, Michel, Crozier et Friedberg, Erhard, L'acteur et le système, Les contraintes de l'action collective. Paris: Éditions du Seuil, pp.23, 30, 72. Também, Bernoux, Philippe, La sociologie des organisations. Paris: Seuil/Essais, 1985, p. 167.
[2]Mas esse quadro não deve ser visto como um modelo homeostático, regulado para sempre. As relações de poder são processuais e embutidas na luta.
[3]Existe em Simmel uma importante reserva contra a imprecisão no uso desse termo. Assim, ele sustentou num dos seus livros que o verdadeiro constrangimento é aquele que se exerce pela violência física ou pela hipnose e que nos outros casos nada nem ninguém pode obrigar-nos a fazer o que quer que seja, uma vez que podemos simplesmente... não o fazer. Lá onde existe esta possibilidade, não pode falar-se em constrangimento. Portanto, dizer que sou «constrangido» a não fazer algo para evitar uma punição, é falso, dado que posso decidir correr as consequências da execução do acto - veja Simmel, Georg, Philosophie de l´argent. Paris: PUF, 1987, pp.502-503.
[4]Sei bem quão perturbadora é esta expressão.
[5]Jouvenel, Bertrand de, Du pouvoir, Histoire naturelle de sa croissance. Paris: Hachette/ Pluriel, 1972, pp.46-47, 50.
[6]Spinoza, Traité de l'autorité politique. Paris: Gallimard, 1978, p.99.
[7]La Boétie, Étienne de, De la servitude volontaire ou contr'un suivi de sa réfutation par Henri de Mesmes suivi de Mémoire touchant l'édit de janvier 1562. Paris: Tel/ Gallimard, 1993, p.102.
[8]Kant, Emmanuel, Oposcules sur l'histoire. Paris: GF-Flammarion, 1990, p.77.
[9]Godelier, Maurice, Les processus de formation de l'État, in Kazancigil, Ali( dir), L'État au Pluriel, Perspectives de Sociologie Historique. Paris: Economica, UNESCO, 1985, pp.21-22.
[10]A propósito do conceitos de compensação e supercompensação, ver Adler, Alfred, Connaissance de l'homme, Étude de caractérologie individuelle. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1966, pp. 65-72. Para uma crítica a este tipo de causas, veja Beauvoir, Simone de, O Pensamento da Direita, Hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, pp. 16-17 e passim.
[11]Veja, a propósito, o admirável e perturbante livro de Milgram, Stanley, Soumission à l'autorité, Un point de vue expérimental. Paris: Calmann-Lévy, 1974, pp.17-29.
[12]Platon, La République. Paris: GF-Flammarion, 1966, p. 354.
[13]Canetti, Elias, Masse et puissance. Paris: Tell/Gallimard, 1960, p. 324.
[14]Veja, a propósito, Hegel, G. W. F., Précis de l'Encyclopédie des Sciences Philosophiques, La Logique, La Philosophie de la Nature, La Philosophie de l' Esprit. Paris: Librairie Philosophique J.Vrin, pp. 242-243.
[15]Sperber, Manès, Psychologie du pouvoir. Paris: Éditions Odile Jacob, 1995, p.19 e passim.
[16]ibid., pp.187-189.
[17]Weber, Max, Économie et société, Les catégories de la sociologie/I, pp. 95, 285.
[18]Arendt, Hannah, Du mensonge à la violence. Paris: Calmann-Lévy, 1972, pp.145-146; também, Russ, Jacqueline, Les théories du pouvoir. Paris: Librarie Général Française/Le Livre de Poche, 1994, pp.38-39.
[19]Arendt, Hannah, Du mensonge..., op.cit., pp.53-104.
[20]«Pode dizer-se que o cesarismo exprime uma situação em que as forças em luta se equilibram de uma maneira catastrófica, isto é se equilibram de uma maneira em que a continuação da luta não pode concluir-se senão com a destruição recíproca. Quando a força progressiva A luta com força retrógada B, pode acontecer não só que A vença B ou B vença A, mas pode acontecer também que não vença nem A nem B, mas que desfaleçam reciprocamente e intervenha do exterior uma terceira força sujeitando o que resta de A e de B.» - Gramsci, Antonio, Obras Escolhidas. Lisboa: Estampa, 11974, volume 1, pp.348-355.
[21]Clausewitz, Arte e Ciência da Guerra. Lisboa: Edições Maria da Fonte, 1973, p.12.
[22]Charnay, Jean-Paul, Critique de la stratégie. Paris: L'Herne, 1990, p.76.
[23]Este termo não possui, aqui, qualquer associação directa com os significados correntes( por exemplo, título de nobreza, soberano ou membro de uma família real, etc.). Ele tem, antes, uma ressonância maquiaveliana e joga, de alguma maneira, com a figura «intemporal» e manipuladora do «senhor».
[24]Machiavel, Le Prince suivi d'extraits des Oeuvres politiques et d'un choix des Lettres familières. Paris: Gallimard, 1980, p.55 e passim.
[25]ibid. p.78.
[26]ibid., p.131.
[27]Dostoievski, Os Irmãos Karamazov. Lisboa: Arcádia, 1977, pp. 259-277.
[28]Balandier, Georges, Sens et puissance, Les dynamiques sociales. Paris: PUF, 1971, 3e éd, p. 162.
[29]Como sabeis, o ensino é hoje, especialmente na esteira de um Pierre Bourdieu e de um Passeron, por exemplo, cada vez mais interpretado como um fenómeno político imediato, destinado a reproduzir uma determinada ordem social.
[30]Veja Rivière, Claude, Les liturgies politiques. Paris: PUF, 1988.
[31]Face ao desgaste da "ordem" em Moçambique, à erosão das "obediências adquiridas", tenham-se em conta os esforços estratégicos governamentais para encontrar fórmulas disciplinares e conformadoras eficientes. A este propósito, a apologia diritâmbica dos «chefes tradicionais» é exemplar.
[32]Spinoza, Traité des autorités théologique et politique. Paris: Gallimard, 1954, p.309.
[33]Dizer assim as coisas é enunciar um truísmo. Em que casos, na verdade, essa relação não existiria?
[34]Este é um termo carregado de ambiguidade e vale a pena, em meu entender, deixar aqui algumas observações. Escreveu Simmel, por exemplo: «(...); se esta [liberdade] liberta de qualquer coisa, é ao mesmo tempo liberdade para qualquer coisa. Fenómenos observados nos domínios mais variados da vida confirmam-no. Quando na vida política um partido reclama ou proclama a liberdade, não se trata na realidade da liberdade ela-mesma, mas destes ganhos positivos, aumento do poder, extensão, que lhes eram até então interditos. A «liberdade» que a Revolução Francesa proporcionou ao Terceiro Estado significava que um quarto estado estava prestes a desenvolver-se, que o Terceiro podia doravante «livremente» fazer trabalhar para si. A liberdade da Igreja significa directamente a extensão da sua esfera de influência; a sua «liberdade de ensinar», por exemplo, significa que ela fornece ao Estado cidadãos que são marcados por ela e sob sua influência(...)» - Simmel, Georg, Philosophie..., op.cit., pp.506-507. Por outro lado, seria preciso estudarmos o capitalismo como sistema cultural no qual liberdade quer dizer, entre outras coisas, segundo C.McAll, «(...) a liberdade de se apropriar das terras e das matérias-primas, e a liberdade de dispor dos seus empregados à sua vontade, sendo dado que- durante as horas de trabalho - os empregados são supostos «pertencerem» ao seu empregador» - veja McAll, Christopher, Capitalisme et culture, in Lavallée, M., Ouellet, F., Larose, F., Identité, Culture et Changement Social. Paris: L'Harmattan, 1991, p.41.
[35]Foucault, Michel, Le Pouvoir, comment s'exerce-t-il?, in Dreyfus, Hubert et Rabinow, Michel, Michel Foucault, Un parcours philosophique. Paris: Gallimard, 1984, p. 315.
[36]Machiavel, Le Prince..., op.cit., p.74.
[37]Ver Hobbes, Thomas, Léviathan, Traité de la matière, de la forme et du pouvoir de la république ecclésiastique et civile. Paris: Éditions Sirey, 1971, 1983, 3e tirage, pp.121-127;__, Le citoyen ou les fondements de la politique. Paris: GF-Flammarion, 1982, pp. 67-100.

23 maio 2006

Inquérito

Um leitor deste diário, Manuel Mangue, chamou-me a atenção para um inquérito realizado no país e cujos resultados gerais podem ser consultados no seguinte site:
http://allafrica.com/stories/200605220820.html?page=2
Nada poderei comentar sobre os resultados do inquérito, pois não sei como foram elaborados os questionários, qual a pertinência da amostra, qual a margem de erro prevista, etc.

África tem necessidade de imprecadores

“Nenhuma sociedade progrediu sem fazer a sua própria crítica, sem que os seus criadores e pensadores se metessem contra a corrente dos bem-pensantes (…) África tem necessidade de imprecadores.” (Henri Lopes, escritor zairota)
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Veja Lopès, Henri, Mes trois identités, in Kandé, Sylvie (dir), Discours sur le métissage, Identités métisses, En quête d´Ariel. Paris: L´Harmattan, 1999, pp. 141-142.

Dois pesos, duas medidas

Com Guebeuza inicia-se uma coisa muito interessante no país: o regresso a um certo samorismo, com o apelo a uma espécie de milenarismo razoável. O distrito como alavanca do desenvolvimento, uma pressão grande sobre os governos locais, todo um vocabulário samoriano adaptado aos tempos de hoje (auto-estima, orgulho de ser moçambicano, luta contra o espírito do deixa- andar e contra o burocratismo, etc.), presidência aberta em sucessivas viagens pelas províncias e pelos distritos, escuta prolongada das críticas do povo, um grande investimento no trabalho partidário. Estamos perante toda uma postura de resgaste aparente dos anseios populares.
Essa, uma prática de “esquerda”.
Mas, ao mesmo tempo, fazemos um incessante apelo ao investimento de capital, convidamos em todos os fóruns os investidores estrangeiros, batemos mesmo com incessante frequência à porta da magra classe capitalista local e erguemos alto o facho do sonho “made in Mozambique” quando a maior parte das empresas fechou as portas e milhares de trabalhadores se encontram desempregados. Falamos em postos de trabalho e queremos acreditar que o capitalismo se destina a criar emprego. E, agora, o anteprojecto da nova Lei do Trabalho estende um tapete elegante ao Capital. Assim, as multas por despedimento de trabalhadores são drasticamente suavizadas por forma a reduzir os “custos de operação” das empresas.
Essa, uma prática de “direita”.

Em defesa do Capital

O desacordo entre sindicatos e empregadores prossegue no tocante à revisão da Lei do Trabalho.
Por exemplo e segundo o “Notícias” de hoje, o anteprojecto da nova lei estabelece “uma redução drástica das multas previstas na lei em vigor, o que para os sindicatos constitui uma forma de estimular os empregadores a enveredarem pelos despedimentos maciços e sem justa causa, estimulados pelas penas leves propostas na nova lei”.
E acrescenta o jornal: “O anteprojecto da nova Lei do Trabalho justifica esta redução da moldura das multas por despedimento, pela necesidade de reduzir os custos de operação das empresas” (primeira página).
Acresce que "o empregador está livre de admitir automaticamente até 12% de trabalhadores estrangeiros sem necessitar de autorização do Ministério do Trabalho" (primeira página).
Sindicatos e empregadores reúnem-se de novo amanhã.

Fórmula

Uma fórmula desagradável para os Príncipes: quanto maior for o uso politizado da tradição, maior é o potencial de ilegitimidade existente.

Aprendizagem nas línguas maternas

Um dos temas maiores na discussão do processo de ensino-aprendizagem no pré-primário e primário diz respeito à relação mecânica que se estabelece entre aproveitamento escolar e língua materna.
A tese é simples: o mau aproveitamento escolar na escola primária, especialmente nas zonas rurais, é devido ao uso do idioma oficial português. Se a escolaridade for feita nas línguas maternas, o rendimento escolar será bom.
Ninguém, certamente, porá reservas à importância da alfabetização em línguas maternas, o que, aliás, está consignado nas preocupações da ONU desde 1953.
Mas já é completamente errado defender que a língua portuguesa é o único factor responsável pelo insucesso escolar. Nenhum trabalho sério foi alguma vez feito neste país para demonstrar isso.
Acresce que trabalhos de pesquisa feitos em outros países têm procurado mostrar que o sucesso ou o insucesso escolares podem depender menos dos factores linguísticos do que dos sócio-económicos - veja, por exemplo, Wagner, Daniel A., Langues et lettrismes au Maroc, in Lavallée, M, Ouellet, F., Larose, F., Identité, culture et changement social. Paris: L´Harmattan, 1991, pp.293-304.

Poder

Já falei sobre o poder como relação numa entrada anterior. Volto ao tema.
Na verdade, nenhum «poder» é extrínseco a uma relação, a uma comunicação regular entre pelo menos duas pessoas. Na verdade, que «poder» poderia alguém ter fora dessa relação, fora de um Nós? Talvez seja nesse sentido que se pode dizer como Benjamim Constant que o «poder» é menos uma causa do que um efeito[1].
Com efeito, é na relação societal[2] e só nela que alguém poder ter o «poder» de influenciar ou determinar a minha/ vossa conduta, levando-me e a vós a fazer o que sem essa relação certamente nem eu nem vós faríeis.
Assim, o poder tem uma natureza intrinsecamente relacional e, numa primeira formulação weberiana, pode dizer-se que o poder de A sobre B é a capacidade que A tem de fazer com que B execute algo que ele não executaria sem a intervenção de A[3]. Em termos weberianos, A consegue impor a sua vontade a B[4]. Portanto, A dispõe de mais recursos do que B.
Porém, essa formulação é muito mecânica e não mostra verdadeiramente a natureza relacional do «poder». O que aí está em jogo é, no fundo, o «poder» discricionário de A, aparecendo B como um mero recipiente desse «poder».
Torna-se, portanto, indispensável melhorar a formulação apresentada, da seguinte maneira: o «poder» de A sobre B é a capacidade revelada por A para obter, na relação com B, que os termos de troca lhe sejam favoráveis. Esta formulação parece ser superior à primeira, dando à relação política o sentido de uma genuína relação estratégica e de uma interdependência funcional[5] na qual A não aparece dispondo de «poder» discricionário»[6].
Lá onde a relação política está saturada de força e de violência( do género «a bolsa ou a vida») e onde, portanto, as alternativas à acção social são escassas ou inexistem, não há uma relação de poder, mas uma relação de violência ou de força[7].
Como escreveu Foucault, uma relação de violência age sobre corpos e coisas: ela força, dobra, quebra, destrói, ela aspira à passividade do Outro e, confrontada com a resistência, destrói. Pelo contrário, uma relação de poder articula-se sobre dois eixos fundamentais: por um lado, o Outro é sempre reconhecido como sujeito da acção e, por outro, está sempre em aberto todo um campo mútuo de respostas, de reacções, de efeitos e de invenções possíveis[8].
Não há qualquer tipo de relação humana exterior à(s) relação(ões) de poder.
A evidência empírica mostra-nos que lá onde seres humanos estão em contacto,
questões muito simples se põem regularmente, a saber: quem influencia, quem manda, quem induz, quem ganha, quem perde, etc.[9].
Uma vez que não possuímos todos os mesmos interesses, os mesmos recursos e os mesmos trunfos, toda a relação humana é assimétrica, quer dizer, haverá sempre quem tenha mais «poder» do que outrém e, por consequência, mais dividendos. Dada essa assimetria, o conflito é uma parte constitutiva de toda a cooperação[10], uma força de socialização[11] e de orientação por excelência.
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[1]Constant, Benjamin, De la force du gouvernement actuel de la France et de la nécessité de s'y rallier ( 1796), Des réactions politiques, Des effets de la Terreur ( 1797). Paris: Champs/ Flammarion, 1988, p.77.
[2]Dizer assim as coisas, «relação societal», é um pouco absurdo e pleonástico, na medida em que toda a relação humana só pode ser necessariamente societal. Mas este é, de alguma forma, um velho problema decorrente da essencialização feita à bizarra dicotomia Indivíduo/Sociedade. A propósito desta dicotomia, ver Elias, Norbert, A sociedade dos indivíduos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993, passim.
[3]Para esta definição de Robert Dahl, veja Russ, Jacqueline, Les théories du pouvoir. Paris: Librairie Générale Française, 1994, pp.13-14, 171.
[4]Weber, Max, Économie et société/1, Les catégories de la sociologie. Paris: Plon, 1995, p.95.
[5]Veja, a propósito deste último conceito, Elias, Norbert, Qu'est-ce que la sociologie? Paris: Aube/Pocket, 1991, p.98.
[6]Bernoux, Philippe, La sociologie des organisations, Initiation théorique suivie de douze cas pratiques. Paris: Éditions du Seuil, 1985, pp.159-160.
[7]Veja Sawicki, Frédéric, Textes, 1. Science politique, Sociologie, Histoire. Paris: Belin, 1994, p. 42; Foucault, Michel, Le Pouvoir, comment s'exerce-t-il?, in Dreyfus, Hubert et Rabinow, Michel, Michel Foucault, Un parcours philosophique. Paris: Gallimard, 1984, pp. 313-314.
[8]Foucault, Michel, Le Pouvoir, comment s'exerce-t-il?, in Dreyfus, Hubert et Rabinow, Michel, Michel Foucault..., op.cit., p. 313. Veja, também, Elias, Norbert, Qu'est-ce que..., op.cit., pp.83-121.
[9]Crozier, Michel, Le phénomène bureaucratique, Essai sur les tendances bureaucratiques des systèmes d'organisation modernes et sur leurs relations en France avec le système social et culturel. Paris: Éditions du Seuil, 1963, p.7; Elias, Norbert, Qu'est-ce que..., op.cit., p.84.
[10]Quivy, Raymond e Campenhoudt, Luc Van, Manual de Investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva, 1992, pp.126-134.
[11]Veja, a propósito, Simmel, Georg, Le conflit. Paris: Circé, 1992, pp. 19, 34; Certeau, Michel de, L´Étranger ou l´union dans la différence. Paris: Desclé de Brouwer, 1991.

22 maio 2006

O que dissimula a equação pobreza= fome

(...) O que dissimula a equação “pobreza= fome”, são todos os outros aspectos da pobreza, donde certos são muito complexos: “condições de vida e de alojamento horríveis, a doença, o iletrismo, a violência, as famílias desunidas, a fragilização dos laços sociais, a ausência de futuro e a incapacidade de produzir” – problemas que dificilmente podem ser resolvidos com golpes de biscoitos hiperproteínados e leite em pó.
_________________
Bauman, Zygmunt, Le coût humain de la mondialisation. Paris: Hachette Littératures, 1999, p. 114. O autor comenta e cita um observador contemporâneo, Ryszard Kapuściński, num trabalho por este publicado em The Economist.

Elevada mortalidade neonatal em Moçambique

Em cada mil recém-nascidos, 178 menores de cinco anos morrem anualmente em Moçambique devido a complicações durante e após o parto.
É uma das mais altas taxas de mortalidade neonatal em África.
Nas zonas rurais as crianças estão 1,4 vezes mais em risco de morrer durante o primeiro ano de vida do que nas zonas urbanas.
Mil mães morrem por cada dez mil nascidos vivos.
(“Notícias” de hoje, p. 6.)

Prémio Camões para o escritor angolano Luandino Vieira

Por Fernando Cruz Gomes publicado em: www.portugalnoticias.com

Luandino Vieira, hoje com 71 anos, acaba de ser galardoado com o Prémio Camões. Nada mais justo. Nada mais lógico. De facto, o Prémio, que é o mais importante galardão literário da lusofonia, foi criado, em 1988, para distinguir um escritor cuja obra contribua para o enriquecimento cultural e literário em Português. Luandino Vieira é um dos criadores da ficção angolana, não deixando de ser um notável escritor lusófono, no que o termo tem de globalizante.
O homem-escritor pensa como se no musseque estivesse, usando e abusando, no melhor sentido do termo, da língua mesclada de Português e Quimbundo, que se fala no subúrbio das grandes cidades. A africanidade lusíada tem nele um dos maiores expoentes.
___________________
Agradeço a Iolanda Aguiar o envio desta notícia.

21 maio 2006

Povo critica severamente os dirigentes

O povo de Nangade disse claramente ao presidente Emílio Guebuza que os ministros e os deputados não descem às bases, não estão com o povo, vivem em Maputo, só aparecem quando o presidente viaja - “Notícias” de 19 (p.2) e 20 de Maio(p.3).
É como se tivéssemos regressado ao tempo do presidente Samora Machel.

A madeira de Nangade

Num comício, um estudante, Nkana Saíde, dirigiu-se assim ao presidente Guebuza quando este visitou há dias Nangade, em Cabo Delgado:

“Todos os dias quando regresso da escola vejo camiões-cavalo levando madeira para o porto de Pemba, para ser exportada. Mas, senhor Presidente, aqui mesmo, na nossa cidade, quase todas as escolas não têm carteiras, os alunos sentam-se no chão, afinal esta riqueza é para quem?”

E acrescentou assim o Bula-Bula do semanário “Domingo”, na última página da sua edição de hoje:

“Nkana Saíde certamente não sabe que a madeira, em Pemba, é como o petróleo nos países africanos que o produzem. As populações vivem na miséria, enquanto o petróleo é vendido a preços altíssimos. O dinheiro vai parar nos bolsos dos dirigentes das multinacionais conluiados com os dirigentes nacionais e o povo que se lixe. É assim, caro Nkana Saíde.”

W.I.Thomas

“Quando os homens definem as coisas como reais, elas são reais nas suas consequências.” – W.I. Thomas, decano dos sociólogos americanos.
Veja:
http://www.sociosite.net/topics/texts/thomas.php

Sociologia

“Talvez a sociologia não esteja ainda pronta para acolher o seu Einstein, porque ainda não teve o seu Kepler” – Merton, Robert K., Éléments de théorie et de méthode sociologique. Paris: Armand Colin, 1997, p.11.

20 maio 2006

Sobre o samorismo


Proponho que se entenda por samorismo[1] o conjunto de crenças, de práticas e de métodos utópicos que se estruturou no imaginário popular por consenso e recusa no que concerne ao falecido presidente Samora Machel[2].
Aqui usarei o samorismo apenas na sua estruturação por consenso.
Vou começar por propor um enquadramento do samorismo a partir de Max Weber[3], para, em seguida, o procurar ampliar.
É possível considerar três ideal-tipos de líderes: os tradi­cio­nais, os carismáticos e os legalistas. Obedece-se aos primeiros de acordo com o costume, aos segundos de acordo com os seus feitos e aos terceiros de acordo com as leis[4].
Podemos encontrar nos profetas, nos magos, nos chefes das expedições de caça ou de rapina, nos chefes de guerra, nos senhores à César, eventualmente nos líderes partidários, exem­plos de chefes carismáticos[5].
No ideal-tipo weberiano, as pessoas obedecem a um líder carismático por reconhecerem nele qualidades fora do comum, virtudes extraor­dinárias, por encontrarem nele, enfim, o que Weber chama qualidade extra-quotidiana[6].
A dominação não é exercida segundo normas gerais, tradi­cio­nais ou legalistas, mas em função de revelações e de inspira­ções concretas. Esse tipo de dominação, escreveu Weber, é revo­lucionário na medida em que se apresenta sem ligação com tudo o que existe: «está escrito... - mas eu, eu digo-vos...»[7]
Portanto, se aceitarmos o ideal-tipo weberiano, não foram a legiti­midade da tradição nem a impessoalidade das leis e das instituições que tornaram possível o fenómeno Samora, mas a extra-quotidiani­dade deste, o atributo ou os atributos que ele possuia para impres­sionar e assegurar a autoridade e a dominação carismáticas.
Na verdade, parece ser difícil negar que Samora possuía nele essa extra-quotidianidade. Como dizia a Sra. Graça Machel numa entrevista dada à Rádio Moçambique, «quando Samora entrava numa sala, toda a gente sabia que alguém tinha entrado»[8].
Mas ficar por aí seria esquecer que nenhuma autoridade, nenhuma dominação, se exercem fora de uma relação, seria esquecer, afinal, que a extra-quotidianidade não é uma essên­cia, um atributo, mas o produto concreto da relação líder/povo.
Na verdade, essa extra-quotidianidade foi essencialmente o produto das expectativas e dos anseios das pessoas, umas e outros traduzidos sobretudo nesses fenómenos sociológicos imponentes que surgem sistematicamente no Moçambique independente - as multidões tem­po­rá­rias dos comícios -, mas traduzidos, também, em práticas, em métodos, em gestos, em ditos, em conceitos, em termos, em canções do político por baixo, do político do dia-a-dia[9]. Em termos freu­dianos, poder-se-ia supor que as pessoas projectavam em Samora, por identificação, a figura emblemática de um sobre-eu, de um Pai[10]. Na formulação de um Edward Shils, Samora seria a resposta à necessidade popular de ordem, de cosmos organi­zado, de coerência, de continuidade e de justiça[11].
Portanto, o samorismo é, em meu entender, menos o conjunto dos atributos possuídos «em si» por Samora, do que o conjun­to de expectativas (elas também utopianas) e de identificações projectadas pelas pessoas em Samora. É nessa relação que nasce e se consolida o fenómeno carismático samoriano, «caris­ma intenso e concentrado» como diria Shils[12], é nessa rela­ção que se criam e irradiam as identidades utopiano-populares da revolução.
Mas, é bem de ver, o samorismo só tem sentido se inserido num duplo contexto anómico: o da ruptura da máquina colo­nial e o da produção de utopia.
Na verdade, a ruptura da máquina colonial provoca o imediato des­gaste das práticas, dos valores e das representações colec­tivas sedi­mentados quer ao nível da colonização tradiciona­li­zada, quer ao nível da tradição colonizada[13]. O questiona­men­to desse mundo sedimen­tado e plural faz desmultiplicar e ruir o sistema colonial de autoridade e, mais essencialmente, de produção e de distribuição de bens de consumo.
O desregramento e a desregulamentação do sistema colonial provo­cam de imediato um estado de anomia generalizado. É aqui onde o samorismo surge como uma alternativa, como um regulador «desanómico», como um reactivador do sentido da vida. Ele provoca a vertigem, a surpresa, a juventude dos actos possíveis: as pessoas aderem generalizadamente ao futuro pondo o passado e o presente momentaneamente entre parêntesis.
O futuro não podia e não pode ser, naturalmente, demons­trado. Mas ele era sentido, como em uma vertigem, subjectiva e sagradamente possível, como adequado, como útil, como verdadeiro. E se o futuro se mostrava difícil nuns casos e impos­sível noutros, havia sempre a possibilidade de atribuir aos inimigos ou às circunstâncias adversas as razões ou as causas dos fracassos[14]. Aqui como em todas as práti­cas religio­sas (na verdade, será preciso ver no samorismo uma religiosidade profana e um culto[15]), diria Durkheim que o funda­men­tal está menos nos fins propostos do que na acção invisível que essas práticas exercem nas consciências. Por outras palavras, interessava e interessa menos a prova do que a predisposição a crer e o reconforto moral proporcionado pela crença e pelo culto[16].
Essa aposta samoriana no futuro, exercício de alguma maneira milenarista, gera identidades a dois níveis: na autoconsciência (endo-identidade) e na exclusão (exo-identidade). Os camara­das não são um mero slogan político, um produto das circuns­tâncias: são um princípio étnico[17] vivo que extravasa a cúpula do regime, que ao mesmo tempo incorpora e exclui.
O samorismo desencadeia, também, todo um conjunto de estereó­ti­pos, de estigmas e de bodes expiatórios, com os quais procura manter vivo o desenho, a pureza e a materialidade do futuro e desacreditar todos aqueles que recusam a utopia. A estigmatização assenta em figuras e em situações do passado e do presente. A este propósito, tradução que era do peso das inércias e dos hábitos, o xiconhoca é o estigma paradigmático lançado e popularizado pelo samorismo, do qual o ninja de hoje parece ser o descendente neo-liberal[18].
Porém, o samorismo não é uma aposta sobre o presente ou uma ponte estendida para o passado: ele aparece como a solução irredutível do futuro, nele se pede aos homens que sejam imediatamente o que nunca foram, que façam tábua rasa das sedimentações e da inércia do social[19]. E é aqui que surge um novo estado anómico: o milenarismo samoriano impõe a ida para a frente no momento em que as bases, os hábitos do passado e do presente foram abalados, mas não desapareceram.
É pelo impacto de cada uma das anomias e no choque entre as duas que o samorismo, protocolo extra-quotidiano, começa a aparecer, pouco a pouco, como um sonho demasiado longo, sacudido constan­temente pela realidade, pelo quotidiano, é quando, enfim, o carisma samoriano se rotiniza, para dizer as coisas weberianamente.
Ora, a crença num chefe carismático só tem sentido e só se mantém quando ele é capaz de confirmar o que diz e promete, quando, por­tanto, as pessoas podem receber dele as provas, os benefícios. Quando o chefe carismático não pode ou não consegue provar o que diz ou promete, a sua autoridade e a obediência que lhe é dada perdem-se ou correm o risco de se perder[20].
A recuperação que hoje parece querer fazer-se do samoris­mo[21], o apelo à autoridade do estilo samoriano, não são, eviden­te­mente, estran­geiros à situação anómica vivida no País. _____________________________________
[1]Estou consciente de que a concepção do samorismo aqui apresentada é feita a posteriori, é racionalizada agora por mim e, eventualmente, por outros. Por outro lado, haveria, certamente,que periodizar o samorismo. Acresce que na segunda unidade deste livro, dedicada à etnicidade, haverá lugar para chamar a atenção para o problema das definições.
[2]Na minha tese de doutoramento o neologismo frelimismo foi utilizado para identificar o exercício político da utopia. Veja AHM, Serra, Carlos, De la gestion des corps à la gestion des mentalités en Zambézia, Mozambique (1890/1983)-Rapports de domination, conformisme et déviance politiques. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales,1 995, thèse de doctorat en Sociologie, 3 tomos, 966 pp., tomo 3.
[3]Falar em Samora é colocar o velho problema do papel jogado pelas «individualidades fortes» que surgem «acima» da sua condição histórica. Na verdade, pessoas como Samora são tão marcantes que ao homem-médio moçambicano não resta ou, melhor, não restava, como diria Simmel, outra solução se não a de ser o mero representante, o mero suporte de uma dada condição histórica preenchida por Samora. Face a pessoas como Samora, os actores anónimos são como que despojados da sua individualidade e transformados, diria Simmel, numa «colecção de traços justapostos»-veja Simmel, Georg, Les problèmes de la philosophie de l'histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1984, p.128. Por outro lado, mesmo aqueles que foram de alguma maneira samorianos, quer dizer parentes do estilo, da essência, do brilho carismático de Samora, mesmo esses foram instintivamente apagados, submersos pela individualidade samoriana, remetidos para a condição de homens-médios.
[4]Veja Weber, Max, Le savant et le politique. Paris: Plon,1959, p.102; __, Essais de Sociologie des religions.I. Paris: Éditions À Die,1992, pp.59-64; Gerth (H.H.) and Mills (C.Wright), From Max Weber: Essays in Sociology. New York: Oxford University Press, 1958, pp.196-252,294-301.
[5]Weber, Max, Essais..., op.cit., p.59.
[6]ibid., pp.59-61.
[7]ibid., p.60.
[8]Oiça Graça Machel recorda Samora, entrevista conduzida por Emílio Manhique, cassete produzida e editada pela Rádio Moçambique, 1995, faixa B.
[9]Está por fazer a sociologia de todo este mundo.
[10]Freud, Sigmund, Essais de psychanalyse. Paris: Éditions Payot, 1981, pp.167-174, 240-252. Mas imagens deste tipo são apenas sedutoras e induzem-nos normalmente a considerar o inconsciente como uma gazua causal, heurística e natural de sinal positivo.
[11]Shils, Edward, Centro e Periferia. Lisboa: DIFEL, 1992, p.398.Tal como no caso anterior, esta formulação deve ser encarada com precaução.
[12]ibid., p.224.
[13]Procurei mostrar na minha tese de doutoramento quão idealista é a defesa de uma tradição incólume ao ácido colonial.Veja AHM, Serra, Carlos, De la gestion des corps à la gestion des mentalités en Zambézia, Mozambique (1890/1983)-Rapports de domination, conformisme et déviance politiques. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1995, thèse de doctorat en Sociologie, trois tomos, 996 pp., três tomos, tomos 1 e 2.
[14]Para uma introdução à concepção complotária,veja Furet, François, Penser la Révolution française. Paris: Éditions Gallimard, 1978, pp.89-102;__, Le passé d'une illusion, Essai sur l'idée communiste au XXe siècle. Paris: Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995, pp.84-89. Não se trata, apenas, de um problema do regime: a complotização foi, também, assumida fora dele.
[15]Veja,a propósito do que ela chama «transferência do sagrado» para as festas revolucionárias da revolução francesa, Ozouf, Mona, La fête révolutionnaire 1789-1799. Paris: Éditions Gallimard, 1976, pp. 441-474.
[16]Veja Durkheim,Émile, Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Librairie Générale Française, 1991, p.605.
[17]Aqui está uma subversão do conceito corrente.
[18]Não estou a fazer aqui mais do que traçar um quadro ideal-típico donde excluo as reacções de negação. É evidente que não pode ser descurado o peso dos grupos sociais hostis ao samorismo.
[19]Veja, a este propósito, AHM, Serra, Carlos, De la gestion..., op.cit., tomo 3.
[20]Weber, Max, Essais..., op.cit., p.60. Este quadro é meramente propedêutico e muito genérico. Ele faz apelo aos «homens em geral». [21]Veja, por exemplo, as afirmações de Alexandrino José in SAVANA (94), de 3 de Novembro de 1995, pp.2-4. Mas sabe-se, também, que nos bairros populares de Maputo, Samora é ouvido através de cassetes. Para além da habitual discussão em torno dos «dois» Samoras (o «bom» e o «mau»), parece existir agora
um reagrupamento simultaneamente retrospectivo e prospectivo de Samora, com o presente alimentando um e outro: na verdade, este presente inchado de problemas contribui para projectar no passado um Samora que se considera afinal justo e no futuro, um Samora purificador. Será porém necessário saber-se que sectores e que actores sociais estão na origem e no processo desta resamorização das concepções da vida. Por outro lado, talvez o presidente Guebuza seja, agora, sentido como uma projecção samoriana.

19 maio 2006

O kolira oitocentista zambeziano

Século XIX: nos latifundia do vale do Zambeze, convencionalmente chamados prazos[1], a morte do muzungo ou da sinhára (ou da dona)[2] dava azo a uma situação anómica generali­zada. Os cativos do falecido ou da falecida provocavam então desmandos vários, obrigando os camponeses locais e das vizinhanças a fazer kolira. Mas não só: os comerciantes de passagem eram assaltados e as suas mercadorias roubadas[3].
O kolira é parente dos fenómenos de agitação social provocados pela falta de chuvas, pelas epidemias, pelas inundações, pelas crises políticas, etc. Quando assim acontece, imediatamente as instituições normais enfraquecem, gerando-se uma indiferenciação social e cultural generalizada com ruptura das hierarquias, das funções convencionais e dos valo­res tradicionais. Neste eclipse do social, cada um está contra o outro, todos estão contra todos, novos contra velhos, súbditos contra chefes, cada um quer o que o outro quer, nada é respeitado, o profano confun­de-se com o sagrado, a vida com a morte. A saída da crise é mimeticamente sentida e exigida. Camponeses, passantes, comer­ciantes tornam-se os bodes expiatórios. Seguem-se a catarse social, a unanimidade violenta, a destruição e a morte das vítimas expiatórias. O capital de ódio e de desconfiança mútua uniformiza-se e é polarizado, hipostasiado na vítima expiatória ou nas vítimas expiatórias. Efectuada a destruição, feita a pilhagem, processado o linchamento colectivo e, final­mente, eleito o novo muzungo ou a nova sinhára, as insti­tuições, as hierarquias e as diferenças sociais são repostas[4].
______________
[1]Latifundia é, certamente, um termo inapropriado. Mas ele parece-me apesar de tudo mais apropriado do que o familiar prazos, termo jurídico. Seja como for, não é minha intenção aprofundar o tema aqui e agora.
[2]Sinhára é corruptela de senhora. Recuso aqui usar essoutro termo familiar, prazeiros, mas que é rigorosamente errado e, além do mais, de um deplorável mau gosto.
[3]Kolira=chorar; na terminologia portuguesa, choriro.Veja, por exemplo, Newitt, M.D.D., Portuguese Settlement on the Zambesi, Exploration, Land Tenure and Colonial Rule in East Africa. London: Longman,1973, pp.194, 238;__, A History of Mozambique. London: Hurst&Company, 1995, p.235.
[4]Veja, para a grelha teórica, Girard, René, La violence et le sacré. Paris: Éditions Bernard Grasset,1972, pp.63-178; __, Des choses cachées depuis la fondation du monde. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 1978, pp.9-68, 146-211, 4O1-421;__, Le bouc émissaire. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle,1982, passim.

As mulheres mais belas de África

Tenho para mim que as mulheres mais belas e melhor vestidas de África são as senegalesas.
Quantas vezes, no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, eu me sentava esperando os passageiros oriundos de Dakar, via Air Africa!
E lá vinham elas, as mulheres, andar lento, íntimo e doce, ao mesmo tempo feminino e dominador, vestidas com maravilhosas capulanas, com turbantes não menos maravilhosos, sorrindo sempre, uma espantosa síntese das culturas africana e árabe.
E, coisa sublime, se todas me pareciam sempre iguais no fino traço de serem belas e belamente vestidas, cada uma se distinguia sempre das outras no vestir, pelo modelo da capulana, pelas cores, pelos motivos estampados. Nada de excesso, tudo etéreo, tudo de um bom gosto exemplar. é
Penso que em Moçambique as mulheres que mais se aproximam de senegalesas são as de Pebane, na costa.
Se me perguntarem com que dados, variáveis e medidas faço semelhante tipo de afirmações, respondo-vos que, de vez em quando, tenho o direito de trocar a razão pela emoção e, finalmente, de defender os meus postulados estéticos, rigorosamente anti-estatísticos.